1. O
Dilúvio Universal
Em um tempo
marcado pela corrupção dos seres humanos, e em que até mesmo os seres
celestiais (“os filhos de Deus” Gn.6.2) tomaram mulheres terráqueas para seu
deleite sexual, gerando uma raça de gigantes e homens valentes (heróis ao
estilo grego?), viu Deus a maldade dos humanos se espalhar pela terra, e,
arrependido de tê-los criado (Gn.6.6) resolveu mandar uma grande inundação para
pôr fim a “toda carne”.
Entretanto,
existia um homem justo chamado Noé, e Deus resolve preservá-lo junto a sua
família e a um casal de cada espécie de “tudo o que vive” (Gn.6.19), ou seja,
de todo animal sob a face da terra para um posterior repovoamento pós diluvio.
Para isso Noé deveria construir um barco de trezentos côvados de comprimento (133m),
cinquenta côvados de largura (22m) e trinta de altura (14m). Assim que as águas
começassem a cair o barco seria fechado na parte superior, pois, choveria por
quarenta dias e quarenta noites, e, durante mais ou menos um ano ele navegou ao
sabor das ondas até aportar no monte Ararat na atual Turquia (ver foto acima). Por um ano esse
foi o lar de Noé, sua esposa, seus três filhos, suas três noras e um bom número
de animais... Não deve ter sido fácil habitar nessa embarcação.
Assim como
existe uma versão babilônica para o mito da criação, também existe uma
historinha que possui inúmeras semelhanças com o relato bíblico do dilúvio;
trata-se da epopeia de Gilgamés escrita em meados do século VIII a.C. Nessa
narrativa babilônica, os deuses não estavam mais suportando o barulho causado
pelos seres humanos e resolvem exterminá-los por meio de um dilúvio. Porém, Ea,
deus das águas doces e um dos criadores da humanidade, avisa ao jovem
Utnapistim do plano de extermínio e o manda construir um barco para que se
salve, ele e a semente de toda a vida. E assim se fez, Utnapistim, seus bens, sua
família e os artesãos que o ajudaram a construir o barco são poupados desse
dilúvio que durou apenas sete dias e causou espanto até nos deuses que tiveram
que se refugiar no mais alto dos céus, deixando a terra empilhada de cadáveres
que já se transformavam em barro (lembram da criação do homem na Bíblia, feito
de barro?).
Findo o dilúvio
tanto Noé quanto Utnapistim fazem um sacrifício ao seu deus e são ambos
abençoados: o herói babilônico é promovido a “deus” e vive feliz para sempre ao
lado dos outros deuses; quanto ao herói bíblico lhe coube a missão de povoar a
terra e reinar sobre todos os animais, recebendo a garantia da parte de Deus de
que não teria que passar mais por nenhum tipo de destruição da terra por meio
de um dilúvio (Gn.9.11); a partir de então, Noé virou agricultor, cultivou
vinhas, inventou o vinho e também o primeiro porre da Bíblia, com sérias
repercussões étnicas (Gn. 9.20-21).
Histórias de uma
grande inundação também aparecem nos relatos de outras culturas que habitaram
aquela região, o que leva a crer que deve ter acontecido algum evento dessa
natureza, ainda mais quando sabemos que a região era cortada por dois grandes
rios (Tigre e Eufrates) e que o povo da Bíblia habitou por longo período as
terras da Babilônia em dois momentos distintos de sua história e antes da
composição escrita da Torá. Desse modo,
é lógico supor que tais histórias tiveram uma influência na construção dos mitos
bíblicos, uma verdadeira reunião de relatos colhidos pela tradição oral e
posteriormente adaptados à realidade social dos hebreus, que mais tarde foram
escritos nos rolos, séculos depois, já no período monárquico. Além disso,
existem registros no Alcorão, na história de Nuh, um dos cinco grandes profetas
do islã; há também acréscimos da tradição cristã com os primeiros pais da
igreja; e os acréscimos da tradição rabínica; todos eles tentando responder às
questões que são colocadas abaixo, sobre quantidade de animais, convivência
entre espécies, alimentação e destino de dejetos.
Apesar de tudo,
principalmente da impossibilidade de se transpor um evento regional para o
âmbito universal, ainda existem muitas pessoas que aceitam literalmente o
relato bíblico como verdade incontestável. Milhões foram gastos em expedições
ao Monte Ararate, na Turquia, onde acreditavam que a arca de Noé havia
aportado, em uma tentativa de encontrar alguma evidência material da história
bíblica.
E tudo isso sem
sequer levar em consideração toda uma serie de impossibilidades de ordem mais
direta, tais como:
·
De que se alimentaram os moradores da arca
(humanos e animais) durante esse período de quase um ano?
·
Onde e como satisfaziam suas necessidades
fisiológicas de excreção e como eram descartados os dejetos nos primeiros
quarenta dias da arca fechada? E nos trezentos dias que se seguiram, como os
oito tripulantes lidaram com as questões relativas à higiene dentro do barco,
já que o mau cheiro deveria ser insuportável?
·
Como caberiam tantos animais num espaço tão
pequeno, se sabemos hoje que só o número de espécies de insetos existentes
seria suficiente para superlotar a arca sem sobrar o menor espaço para Noé e
sua família?
·
Como a anta, o tamanduá e a onça vieram parar na
América do Sul? O alce, a águia real e o lince na América do Norte? Os
marsupiais na Austrália, o urso panda na China e tantos outros animais
específicos de determinadas regiões?
·
Onde Noé arranjou tanta madeira para construir a
arca numa região praticamente desértica?
·
E quanto tempo deve ter esperado para juntar os
pares de animais antes de embarcar?
Pelo exposto acima fica difícil
acreditar no Dilúvio como um evento universal. Está mais do que provado que não
foi, entretanto, a autoridade conferida às escrituras como sendo a palavra de
Deus, tem levado as pessoas a suspenderem seu pensamento crítico, racional, e a
aceitarem a narrativa mitológica bíblica como verdade. É como aquela velha
anedota, em que o fundamentalista é
questionado sobre a impossibilidade de o profeta Jonas ter passado três dias
dentro de um grande peixe; ao que ele responde: se a Bíblia dissesse que foi
Jonas que engoliu a baleia e que ela passou três dias dentro dele até ser
vomitada eu acreditaria e ponto final. Evidências não convencem
fundamentalistas de qualquer credo religioso, mas ajudam àqueles que ainda não
se contentam com a suposta autoridade dos textos religiosos.
Mas a história de Noé não acaba
com sua descida do barco; como dissemos acima: ele desce e vira agricultor,
cultiva vinhedos, fabrica o vinho e toma o primeiro porre da história que
resultará em maldição sobre o filho que o encontrou caído nu pelo canto da
tenda, pelo simples fato de o filho ter visto a nudez de seu pai
involuntariamente (Gn. 9.20-25). Aqui poderíamos questionar a justiça divina
relativa as bênçãos ou maldições, mas deixemos isso para outra oportunidade.
Cam ou Cão, pagou caro pela embriaguez de seu pai, foi amaldiçoado e a terra
para onde foi também, que mais tarde seria chamada de África. Alguém lembra da
história de um certo pastor deputado que faz escovinha no cabelo, e disse que
os africanos são amaldiçoados? Pois é, ele estava se referindo a essa passagem
da Bíblia, e nesse ponto vou defende-lo da acusação de racismo que lhe foi
imputada, pois, não é que ele seja racista, o problema é que ele acha que a
narrativa bíblica está correta. Assim como ele milhões de seres humanos são
levados a crer na inerrância das escrituras sagradas; e, nesse movimento a
razão é convidada a se retirar.
Quando contei essa história da
arca de Noé para meu filho caçula, na época ele tinha seis ou sete anos, e
ainda não sofria a influência da “autoridade das escrituras”, a pergunta que
ele me fez (acho que depois de tanto assistir ao canal Discovery) foi: como
pai é que um leão vai ficar ao lado de tanta comida sem atacar? Eu não sei, mas
sei que a melhor resposta foi dada pelo site “Nauticursos” que assinala: “para
pessoas dotadas de boa fé como eu, não é difícil acreditar mesmo analisando os
fatos acima de que Noé realmente conseguiu tal feito, pois se tinha ajuda de
ninguém menos que o Criador, aquele que em sete dias e sete noites criou todo o
universo, construir um navio gigante e reunir todos os animais não foi assim
uma tarefa tão descomunal. Acho que o simples fato de não haver provas é mais
uma obra divina, pois apenas pessoas de muita fé são capazes de entender e
acreditar neste fato colossal que para nosso Criador deve ter sido uma tarefa
tão difícil quanto o estalar de dedos. Pensem nisso”.