terça-feira, 15 de abril de 2014

O Amor segundo Clarice Lispector.



Rifa

Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga. Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário. Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões. Um pouco inconseqüente que nunca desiste de acreditar nas pessoas. Um leviano e precipitado, coração que acha que Tim Maia estava certo quando escreveu... "não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero...". Um idealista... Um verdadeiro sonhador... Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos. Este coração tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo. Rifa-se este desequilibrado emocional que, abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver intensamente e, contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções. Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. Um coração que quando parar de bater ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas: " O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. “Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer". Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão inconseqüente. Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras que, ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo. Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina. Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e, a ter a petulância de se aventurar como poeta.
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“Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue;outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho...o de mais nada fazer”.

“Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida”.
 


quarta-feira, 9 de abril de 2014

A garota da sala de bate-papo: um caso clínico.

Vou continuar com uma série a muito tempo abandonada, ou seja, meus relatos de casos clínicos. Bem, essa história tem coisas muito interessantes e que vão parecer ao leitor absurdas também. Pelo título já supomos que nossa protagonista é uma aficionada de primeira linha da internet. Varar a madrugada em salas de bate-papo, facebook, redes de encontros amorosos, no skipe ou mesmo no whatsapp eram seus passatempos favoritos; durante o dia também acessava se sobrasse tempo entre os estudos e as obrigações de casa. Tudo muito "normal" para uma jovem solteira de 24 anos em busca de alguém. Mas, o problema (não para ela em princípio) era que ela já tinha alguém, mas denegou essa relação para si mesma.
 Vejam a loucura: um dia ele escreveu para o site "Sabedoria de Bruxa" (como se isso fosse possível de existir, bruxas, e na pior das hipóteses bruxas com sabedoria), dizendo que gostara muito das "simpatias para afastar as energias negativas" e queria uma receita especial, pois, acreditava que sua vizinha tinha lhe lançado uma espécie de maldição por não ter aceitado namorar com o filho dela, e desde então, "Nunca mais consegui arranjar nenhum namorado"( sic). "Eles veem aqui em casa e logo depois somem"(sic).
Perceberam o absurdo? Ela estava namorando a dois anos e meio com um sujeito bem apessoado, com certa estabilidade financeira e sucesso pessoal e profissional, mas, era como se ele não existisse. Ela simplesmente deletou o seu namorado, a quem dizia amar, para se engajar - sem que ele soubesse é claro - numa busca desenfreada por homens na internet. Esse namorado era mantido no mais completo sigilo, ninguém de seu círculo de relações sabia da existência dele, talvez ela sentisse vergonha devido à diferença de idade entre eles, mas, aos 50 anos ele não faria vergonha a mulher nenhuma, pois, além da boa aparência era também bastante jovial. A dificuldade em assumir a relação era dela, e, ao que parece, ela mesma não o considerava como namorado, apesar de jurar-lhe amor em longas e apaixonadas cartas via email.
Em sua busca por paqueras e casos amorosos ela cometia imprudências que nem criança comete na internet. Ao primeiro sinal de interesse ela saía dos chats e ia direto paro o email trocar fotos com desconhecidos e marcar encontros. E não se contentava só com um admirador, queria muitos, tantos quanto pudesse manter em sua rede de carência afetiva misturada com teatralidade histérica (meio personagem de Nelson Rodrigues), mas, depois vinha a decepção, que a fez recorrer à bruxaria, as soluções mágicas, como se só uma mágica pudesse lhe tirar desse buraco da falta de amor próprio.
No senso comum diriam que se tratava mesmo de safadeza, no mínimo leviandade e no máximo falta de caráter, seria vista como toda mulher oferecida é vista, como uma vagabunda qualquer com furor uterino. Talvez até tenha algo dessa natureza em sua conduta, mas não é o essencial, pois, é justamente isso que chamamos de caráter histérico, o que não justifica seu comportamento, e nem achamos ele evoluído moralmente, mas, nós psicanalistas não fazemos juízos de valor (pelo menos tentamos) e a Psicanálise é estritamente amoral. Deixemos o julgamento para o namorado traído quando descobrir a verdade, e ele vai descobrir, a histérica sempre deixa rastros.
Era uma jovem universitária, 24 anos, bonita, mas vazia, que em vez de se aconselhar na superstição da bruxaria e acreditar nessa besteirada de maldição, inveja, olho gordo ou mau olhado (o que não é nada inteligente), poderia buscar na análise um caminho para poder suportar essa dor da castração, da qual ninguém escapa em vão. A maldição foi lançada por ela mesma quando "escolheu" não ser a Mulher da sala de aula, da sala de estar, da sala da vida, enfim, ser a Mulher (inexistente no dizer de Lacan) e preferiu brincar de ser a garota da sala de bate-papo. Histórias assim não tem final feliz.