Vi essa charge e cheguei a conclusão de que todo processo que levou ao impedimento da presidente Dilma, passa irremediavelmente pelo desgaste de sua imagem enquanto estadista, maior mandatária do país.
Claro está que uma administração incompetente marcada por alianças à base de propina e joguetes políticos, aliada ao que há de pior - corrupção e pedaladas fiscais - já são suficientes para queimar o filme de qualquer um. Mas a crença na impunidade, a vaidade, a arrogância narcisicamente exacerbada levam a isso: rejeição mais pessoal que política.
Claro está também que noventa porcento daqueles senadores que julgaram a processo de afastamento da presidente Dilma, são tão desonestos quanto ela, alguns até mais; mas isso não diminui os erros e crimes cometidos pela ex-presidente.
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
segunda-feira, 29 de agosto de 2016
RELAÇÕES DE PODER EM “A CASA DE BERNARDA ALBA
Federico Garcia Lorca nasceu em cinco de junho de 1898 no município de
Fuentevaqueros, em Granada, Espanha; filho do pequeno proprietário de terras
Federico García Rodriguez e de Dona Vicenta Lorca, professora primária que
fomentou o gosto literário que manifestaria futuramente. Não foi um aluno
exemplar, mas conseguiu ingressar no curso de Direito em Granada,
transferindo-se depois para Madri, onde conclui a formação acadêmica e inicia
um período de viagens ao exterior (Estados Unidos e Cuba). Ao retornar à
Espanha, cria um grupo de teatro chamado “La Barraca ” e provoca um choque, de dimensões e
conseqüências extremas, na sociedade conservadora de então, por expressar suas
idéias socialistas e uma forte tendência homoerótica. Esse espírito libertário
causou tal incômodo aos poderes constituídos – o governo fascista de Franco e o
catolicismo ultramontano – que culminou com sua prisão e execução em agosto de
1936.
Lorca estreia na literatura em 1918 com o livro “Impresiones y Paisajes”,
e no teatro em 1920 com “El malefício de la mariposa”, seguindo-se, a partir de
então, intensa produção artística que transita pelo universo da prosa, da
poesia e do teatro. A crítica espanhola e internacional é unânime em reconhecer García
Lorca como um dramaturgo excepcional, como um dos mais
representativos autores de teatro em língua espanhola do século XX. Seu teatro
fundiu elementos antigos – como o fatalismo da tragédia grega – e modernos,
conferindo às personagens uma intensa força dramática e uma inegável dimensão
real.
Nossa análise toma como objeto um dos textos de Lorca mais conhecido e
encenado: “A casa de Bernarda Alba”, que ao lado de outras duas peças – Yerma e
Bodas de Sangue – compõem uma trilogia que revela um cenário necrofílico dos
costumes da Espanha de seu tempo. A trama se desenvolve numa casa situada em um
pequeno povoado da Espanha; dezesseis personagens e as não numeradas “mulheres
de luto”, todas do sexo feminino, são indicadas pelo nome ou pela função que
desempenham naquele momento funesto nessa casa, que por transformar-se em algo
similar a uma prisão ou convento, foi descrita pelas pesquisadoras Rosa e Silva
e Maluf (2005) como “casa-cárcere da verdade”. O movimento das personagens é
determinado pela decisão da protagonista, Bernarda Alba, de decretar luto
fechado de oito anos em memória de seu finado segundo marido, o que provoca
reações diversas em suas filhas, em suas criadas e nas outras mulheres
circunstantes, colocando em cena uma variada gama de sentimentos e
comportamentos demasiado humanos em que se sobressaem autoritarismo, fanatismo,
machismo, preconceitos, vingança, desejo, gozo e interdição.
O autor traça ao longo da obra um desenho das relações humanas pelo viés
das relações de poder: o poder nas relações sociais, que divide o mundo –
interno e externo – entre aqueles que possuem capital e aqueles que não
possuem; o poder nas relações familiares, que submete a esposa ao marido e os
filhos aos pais; o poder enquanto representante de uma ordem divina, que opõe o
carnal ao espiritual, e permeia todas as outras relações, situando-se sempre do
lado das estruturas dominantes e repressoras. Bernarda é a fiel representante,
pelo lado da dominação, dos três tipos de relação de poder apontados acima:
para suas criadas ela é a “tirana de todos que a rodeiam”, ela é aquela que
pensa que os “pobres são como os animais”, feitos “de outras substâncias”, e
como tais devem ser tratados; para suas filhas ela é a guardiã da honra e
representante da Lei, é agente da repressão dos desejos e da interdição ao
gozo; além dos papéis supracitados, ela parece ser também a representante da
ordem divina.
Examinemos cada uma das três relações de poder citadas acima. O exercício
do poder nos relacionamentos sociais enquanto reflexo de uma superestrutura
própria do capitalismo é apresentado no início da peça a partir das falas de
Bernarda e das criadas. Para as últimas, a patroa é autoritária e dominadora
(p.13), exerce seu poder com tirania e exibe como símbolo de seu poderio um
bastão, que além de denotar uma fálica tirania – quem sabe uma alusão ao
caráter misto e amalgamado que rege as relações de poder, que opõe não apenas
riqueza e pobreza, mas se imiscui também nas questões de gênero – também aponta
para a possibilidade de punição agressiva. O poder de Bernarda é o poder do
latifúndio, do dinheiro, que submete os outros aos seus desejos, que faz
sangrar as mãos da criada de tanto esfregar para deixar as coisas reluzentes
(p.14), que as alimenta com as sobras de suas refeições (p.15) e as trata como
a animais, como se pode ler no lamento de Pôncia “Mas eu sou uma boa cadela:
ladro quando ma falam e mordo os tornozelos dos que pedem esmolas quando ela me
atiça” (p.15).
Lorca desmascara também a reprodução desse modelo de dominação
possibilitada pelo capital no comportamento da criada, que passa, ainda que
momentaneamente, de humilhada (pela patroa) àquela que humilha ao outro que lhe
é hierarquicamente inferior na escala social: a mendiga que vem “atrás das sobras”
e é expulsa da casa pela criada que lhe lembra que ela pode ir sobrevivendo
“como os cães”. Outro aspecto relevante a esse tipo de relação social que é
muito bem pontuado na peça, diz respeito à sujeição quase que total da classe
dominada aos desejos da dominante, para quem até o corpo da criadagem
inscreve-se como sua propriedade, como se pode lê nessa fala da criada (p.18),
cujo corpo e alma pertenciam ao seu senhor:
“Cansou de tudo, Antonio Maria Benavides, rijo com tua mortalha e tuas botas. Cansou de tudo! Já não voltará a erguer minhas anáguas atrás da porta de teu curral! (...) Ah, Antonio Maria Benavides, que não mais verás estas paredes nem vais comer o pão desta casa! Eu fui das que te serviram, quem mais te quis (desprendendo o cabelo). Como vou viver agora, Antonio? Vou viver?”.
E, no diálogo
entre as duas criadas (p.16), o autor coloca em evidência a oposição
dominante-dominado pela via da questão agrária, problemática que ocupou o
centro dos debates entre a direita franquista e a esquerda pró-soviética da
década de trinta na Espanha. Lorca expõe o problema de forma poética nesse
diálogo que inicia com a fala da criada ao expressar sua inveja pela situação
das filhas de Bernarda, afirma: “Quem me dera ter o que elas têm!”; ao que
Pôncia responde: “Temos nossas mãos e uma cova na terra”, e a criada arremata:
“É a única terra que deixam para os que não têm nada”, o que nos lembra o verso
de João Cabral em Morte e Vida Severinas: “é a parte que te cabe nesse
latifúndio”.
As expressões das relações de poder no âmbito das relações familiares parecem
constituir o núcleo conflitivo central d’A Casa de Bernarda Alba. O drama se
passa dentro de uma casa, símbolo da família, e, gira em torno de outros
símbolos que também pertencem a essa ordem; desse modo, as questões relativas à
honra, a obediência, a sexualidade (virgindade, gravidez, matrimônio), a saúde,
a doença, a vida e a morte, inscrevem-se nesse universo como fio condutor dessa
trama relacional, desenvolvida nesse espaço mítico onde se dá o embate dos
problemas substanciais da existência humana. Bernarda, a protagonista, cumpre o
papel de defender os valores tradicionais, morais e religiosos, em oposição ao
ímpeto juvenil, aos desejos de amor e sexo reivindicado pelas filhas –
principalmente Martírio e Adela. Com seu comportamento tirânico ela representa
a sociedade, a tirania doméstica reproduzindo a tirania social, e suas ações
repressoras de caráter necrofílico – pois os signos de tudo que possa evocar
prazer e vida devem ser evitados – nos mostra o outro lado da moeda, já que
também ela além de repressora é reprimida.
Tudo começa quando se arranja um casamento para a filha mais velha de
Bernarda, que, aos trinta e nove anos, já passara da idade de casar; o que
deixe claro o caráter mercantil desse acordo matrimonial, já que o noivo – Pepe
Romano, quatorze anos mais novo – ao desposar Angústia é seduzido pelo encanto
juvenil de Adela e nada pode fazer para viver essa relação, pois estava
comprometido com a herança de Angústia, tal qual Enrique Humanes, que parte o
coração de Martírio ao se casar com outra “feia como um demônio”, porém mais
rica: “Que importa a feiúra. Para eles, importam a terra, as juntas e uma
cadela submissa que lhes dê de comer (p.33)”. A presença de Pepe Romano na
atmosfera da casa provoca um intenso rebuliço na vida das filhas de Bernarda,
colocando em cena aqueles sentimentos que permeiam as relações humanas e mais
ainda a relação entre irmãs: inveja e ódio, desprezo e ciúmes, desejos
reprimidos e lascívia, hipocrisia e falsa moral; o que nos leva a pensar que
elas não são simplesmente as pobres vítimas de uma força repressora, mas, de
certo modo idênticas a sua mãe, inculta, acomodada e egoísta, a espera de um
salvador que as tire dessa prisão em que elas mesmas se meteram. Uma amostra
significativa dos sentimentos de ciúme e inveja pode ser observada nessa fala
de Madalena:
“Se Pepe viesse pelo aspecto de Angústia, por Angústia como mulher, eu me
alegraria; mas vem pelo dinheiro. Ainda que Angústia seja nossa irmã, aqui estamos
em família e reconhecemos que ela está velha, doente, e que sempre foi a de
menos predicados em relação a nós. Com vinte anos, parecia uma tábua vestida.
Como será agora que tem quarenta? (p.35)”.
As relações de poder enquanto emanações de uma ordem divina estão
representadas na peça quase que imperceptivelmente nos discursos de cada uma
das personagens, quando aquiescem, conformam-se e reproduzem os valores
religiosos e morais recebidos pela cultura de seu pequeno mundo rural. Talvez a
ênfase posta pelo autor no subtítulo – drama de mulheres em vilarejos da
Espanha – queira nos remeter ao âmago do que acontece na vida social dessas
pequenas comunidades: as casas são em sua maioria construídas em torno da
igreja, as festividades gravitam em volta desse espaço criado pela religião, os
grandes acontecimentos da vida – nascimento, casamento e morte – passam pelo
crivo da instituição religiosa. Até mesmo as questões mais íntimas – de amor,
paixão e sexo – são intermediados pela instituição religiosa que prescreve as
formas mais adequadas de realização dos desejos e se coloca na base da
constituição da própria sociedade, ou como afirma ENRIQUEZ (2001:76):
“A religião como o pensavam DURKHEIM e FREUD, está na própria base da
instauração da comunidade (e mais tarde da sociedade) e de seus modos de gestão
política. Não existe corpo social nem orientação normativa desse corpo sem
religião (sem culto dos ancestrais, sem totens, sem deuses ou sem Deus único)”.
Dentre todas as manifestações humanas reguladas pelo poder religioso a
vida sexual parece ocupar lugar de destaque; na peça, é a ebulição desse caldo
pulsional que leva a desejante e rebelde Adela à morte, justamente ela que no
drama é o pólo que clama incessantemente por vida: quer usar vestidos
coloridos, quer respirar o ar lá de fora, quer fazer do seu corpo aquilo que
lhe aprouver. Mas, cabe à criada Pôncia, “que vê por detrás das paredes”,
lembra-la de “controlar o desejo”, esquecer Pepe e não ir “contra a lei de
Deus”. Controlar o desejo é antes de tudo controlar o corpo que deseja
satisfação, entretanto, como o “destino confinou-as a este convento”, cabe-lhes
reprimir a esse desejo que as desumaniza, que faz assemelhar a uma “mula
selvagem” e contentar-se em esperar por seu homem mesmo havendo “uma tormenta
em cada quarto”. Uma das cenas mais marcantes acontece no final do segundo ato,
quando é contada a história da filha da Librada que engravidou estando solteira
e matou a criança “para ocultar sua vergonha” e agora está sendo arrastada pela
multidão que pretende lincha-la. As mulheres correm até a janela para ver o
tumulto, e, Bernarda, em apoio ao ato do povo grita: “Acabem com ela antes que
cheguem os guardas! Queime no inferno por seu pecado!”, nesse instante, Adela
com as mãos no ventre, em franca identificação com a “pecadora”, protege sua
cria e exclama: “Não! Não!”.
Parece que só restam duas opções para transpor os muros da tirânica
prisão: a loucura ou a morte. Pela “liberdade” possibilitada pela loucura Maria
Josefa quer ver o mar, sair da prisão, a imensidão do mar age como símbolo da
mais pura liberdade, fugir pra bem longe da “cara de leoparda” e quem sabe
morar numa “choupana de coral”. Adela escolheu o outro caminho, o modo mais
radical, o protesto sacrifical contra toda repressão ao desejo, ao amor, à
vida. Ela enfrentou a tirania de Bernarda ao quebrar sua bengala símbolo de
poder, enfrentou suas irmãs e jurou obediência apenas a Pepe. Mas não
conseguiria viver sem ele, a falsa notícia de sua morte a levou ao extremo, ela
viveu e morreu apaixonadamente.
O suicídio de Adela é totalmente denegado; principalmente quando sua mãe se
recusa vê-la pendurada na corda, morta, e preocupa-se antes em afirmar que a filha
“morreu virgem” e que a vistam como donzela e nada comentem para que a
vizinhança não ficasse de mexericos e maledicências. Talvez esse tenha sido o
final feliz para Bernarda Alba, a reconquista do poder:
“Não quero choros! É preciso olhar a morte cara a cara. Silêncio! (A outra Filha.) – Calate, já te disse! (A outra Filha.) – Lágrimas, só quando
estiveres só. Havemos de nos afundar
todas num mar de luto. Ela, a filha mais
nova de Bernarda Alba, morreu virgem. Ouviram? Silêncio, silêncio, já disse: Silêncio!”
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